domingo, 21 de outubro de 2007

"Os Demônios", de Dostoiévski

Primeira parte

- diálogo com Kiríllov -

"-... Eu só procuro saber a razão por que os homens não atrevem a matar-se, e nada mais. Não tem importância nenhuma.
- Não se atrevem? Pois não há bastantes suicídios?
- Muito poucos.
- Acha?
Não me respondeu, levantou-se e pôs-se a passear de um lado para outro.
- Que é que, segundo você, impede os homens de se suicidarem? - indaguei.Olhou-me com ar abstrato, como se quisesse recordar-se do que estávamos a falar.
- Pouco... pouco sei. Há dois preconceitos que os prendem, duas coisas só: uma é mínima, a outra considerável. Mas a mínima também é considerável.
- Qual é essa?
- A dor.
- A dor? É assim tão importante?
- Primordial. Existem duas categorias de suicidas: uns matam-se por excesso de melancolia ou por irritação, ou por loucura, não importa. Esses fazem-no sem vacilar. A loucura não os detém, matam-se logo, agem imediatamente. Quanto aos que o fazem com reflexão, pensam demasiado no caso.
- Então existem os que se destroem por reflexão?
- São muitos. Se não houvesse preconceitos, haveria ainda mais, muito mais, toda a gente.
- O quê? Toda a gente?
Kiríllov calou-se uns instantes.
- Haverá meio de morrer sem dor?
- Imagine - respondeu ele, parando diante de mim - imagine uma rocha com as dimensões de um edifício colossal. Está suspensa sobre nós, nós estamos por baixo. Se nos caísse em cima da cabeça, chegaríamos a sofrer?
- Uma rocha dessas dimensões? É horrível.
- Não falo do medo, refiro-me à dor.
- Uma rocha tão grande... evidentemente que não sentiríamos dor.
- Mas se de facto se encontrasse debaixo dessa pedra suspensa, você teria medo de sofrer. Todos o teriam, médicos, sábios, fosse quem fosse. Sabem que não haveria dor, e no entanto assustam-se.
- E a segunda causa, a mais considerável?
- É o outro mundo.
- Alude ao castigo?
- Tanto faz. O outro mundo é bastante.
- Há ateus que não crêem nisso.
O homem calou-se de novo.
- Julga talvez por si mesmo?
- Cada qual só pode julgar por si mesmo - retorquiu ele, corando - Só existirá liberdade completa no dia em que for indiferente viver ou não viver. Eis o fim, o alvo de tudo.
- Nesse caso, ninguém desejaria viver.
- Ninguém - confirmou Kiríllov em tom decidido.
- O homem receia a morte porque ama a vida, eis como eu vejo as coisas - repliquei. - Assim dispôs a natureza.
- Logro vil! - exclamou, de olhos brilhantes. - A vida é a dor, a vida é o medo, e o homem é infeliz. Tudo é dor e medo. O homem, agora, ama a vida porque ama a dor e o medo. Criaram-no assim. Dá-se a vida a troco da dor e do medo, e eis aí o embuste. O homem de hoje não é ainda um homem. Há-de haver um dia o homem novo, orgulhoso, feliz, a quem será indiferente viver ou não; eis o homem novo. Esse vencerá a dor e o medo e será o próprio Deus. Deixará de haver outro deus.
- Mas Deus existe, na sua teoria?
- Não existe, mas é. Não há dor numa pedra, mas no medo da pedra há dor. Deus é a dor do medo da morte. Aquele que vencer a dor e o medo será o próprio Deus. Surgirá então uma vida nova, um homem novo. Tudo será novo. A história dividir-se-á em duas partes: do gorila à destruição de Deus, e da destruição de Deus...
- Ao gorila?
-...à transformação física da Terra e do Homem. O homem será Deus; transformar-se-á fisicamente. O mundo também se transformará assim como as ações e as idéias, e todos os sentidos. Que lhe parece isto da transformação física do homem?
- Se for indiferente viver ou não viver, todos se hão-de matar, e aí está a sua grande transformação.
- Nem mais. E mata-se a trapaça em que vivemos. Qualquer homem que deseje liberdade deverá atrever-se ao suicídio. O que ousar tal coisa desvendará o mistério do embuste. Fora disso, não há liberdade: está tudo aí; o que ousa matar-se é Deus, de modo que cada qual pode fazer com que deixe de haver Deus. E não haverá. Mas ninguém ainda experimentou.
- Tem havido milhões de suicidas.
- Todo por outra coisa, todos por medo, e não por isto que digo. Nunca para matar o medo. Aquele que se matar só para matar o medo tornar-se-á imediatamente Deus.
- Talvez não tenha tempo - observei.
- Não importa - respondeu Kiríllov, calmo e ufano, quase desdenhoso. - Lastimo que você tenha vontade de se divertir - acrescentou ele daí a pouco."

Um comentário:

Paskyn disse...

"Cada qual só pode julgar por si mesmo - retorquiu ele, corando - Só existirá liberdade completa no dia em que for indiferente viver ou não viver. Eis o fim, o alvo de tudo".
A posição do filósofo é aspera e ousada, para não dizer atrevida.
Será mesmo? Será mesmo que, quando chegarmos ao estágio evolutivo de não temer nem viver nem morrer (e eu duvido severamente de que o homem alcance tal status) alcançaremos a divindade? Desde o príncipio, o homem (e o próprio Demônio)tem buscado suplantar Deus. Ele (o homem), quando não temia a morte por que não a conhecia, tomou da fruta do meio do jardim por que acreditava que, pelo conhecimento do bem e do mal, seria "como Deus".
Mas eu admito que esse é um argumento que demanda fé. E fé cristã.
Liberdade é por certo uma coisa difícil de conceituar, que dirá viver.
E o paradoxo está, pelo menos quando se pensa que boa parte dos que procuram a Divindade (não importanto o credo) buscam libertar-se do mundo e de seus sortilégios, na fala do filósofo de que se deve destruir a divindade e todo o medo que ela supostamente representa.